Naqueles
tempos, a vida em São Paulo era tranquila. Poderia ser ainda mais, não fosse a
invasão cada vez maior dos automóveis importados, circulando pelas ruas da
cidade; grossos tubos, situados nas laterais externas dos carros, desprendiam,
em violentas explosões, gases e fumaça escura. Estridentes fonfons de buzinas,
assustando os distraídos, abriam passagem para alguns deslumbrados motoristas
que, em suas desabaladas carreiras, infringiam as regras de trânsito, muitas
vezes chegando ao abuso de alcançar mais de 20 quilômetros à hora, velocidade
permitida somente nas estradas. Fora esse detalhe, o do trânsito, a cidade
crescia mansamente. Não havia surgido ainda a febre dos edifícios altos; nem
mesmo o “Prédio Martinelli” – arranha-céu pioneiro em São Paulo, se não me
engano do Brasil – fora ainda construído. Não existia rádio, e televisão, nem
em sonhos. Não se curtia som em aparelhos de alta fidelidade. Ouvia-se música
em gramofones de tromba e manivela. Havia tempo para tudo, ninguém se afobava,
ninguém andava depressa. Não se abreviavam com siglas os nomes completos das
pessoas e das coisas em geral. Para que isso? Por que o uso de siglas? Podia-se
dizer e ler tranquilamente tudo, por mais longo que fosse o nome por extenso –
sem criar equívocos – e ainda sobrava tempo para ênfase, se necessário fosse.
Os
divertimentos, existentes então, acessíveis a uma família de poucos recursos
como a nossa, eram poucos. Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no
entanto, eram outros; as mais mínimas coisas, os menores acontecimentos,
tomavam corpo, adquiriam enorme importância. Nossa vida simples era rica,
alegre e sadia. A imaginação voando solta, transformando tudo em festa,
nenhuma barreira a impedir meus sonhos, o riso aberto e franco. Os
divertimentos, como já disse, eram poucos, porém suficientes para encher o
nosso mundo.
GATTAI,
Zélia. Anarquistas graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 1986. p. 23.
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