Certas palavras têm o
significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa
vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas
variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra. Hermeneuta deveria
ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo
se complicaria.
– Os hermeneutas estão
chegando!
– Ih, agora é que ninguém vai
entender mais nada…
Os hermeneutas ocupariam a
cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases
ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão.
Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes
disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. (...)
Traquinagem devia ser uma
peça mecânica.
– Vamos ter que trocar a
traquinagem. E o vetor está gasto.
Mas nenhuma palavra me
fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância.
Eu não sabia o seu significado, nunca lembrava de procurar no dicionário e
imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas
pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico.
Galanteadores de calçada
deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
– Defenestras?
A resposta seria um tapa na
cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra
pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria,
assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas
misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede
defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma
ou outra vez, como em:
– Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma
pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata. Um
dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa
mentir. “Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo feminino.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo
pela janela! Acabou a minha ignorância, mas não a minha fascinação. Um ato como
este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte.
Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém
ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito
francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as
drogas, suprimido a tempo. (...)
Quem entre nós nunca sentiu a
compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para
desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes
externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a
esta volúpia humana, nunca totalmente dominada. Na lua-de-mel, numa suíte
matrimonial no 17º andar.
– Querida…
– Mmmm?
– Há uma coisa que preciso
lhe dizer…
– Fala, amor!
– Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência,
caminha para a cama:
– Estou pronta para
experimentar tudo com você!
Em outra ocasião, uma
multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta
para cima e balbucia:
– Fui defenestrado…
Alguém comenta:
– Coitado. E depois ainda
atiraram ele pela janela?
Agora mesmo me deu uma estranha
compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica.
Se ela sair é porque resisti.
Luis Fernando Verissimo
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